EDUCAR É CRIAR CONEXÕES: POR UMA PEDAGOGIA DO VÍNCULO
- Paulo Garcia
- 21 de jul.
- 7 min de leitura

Imagine a seguinte cena: uma sala de aula comum, 30 alunos, cadeiras enfileiradas, o professor à frente explicando um conteúdo de matemática. No fundo da sala, um estudante parece desinteressado, olha pela janela, rabisca o caderno. O professor continua a explicação como se nada estivesse acontecendo, afinal, “não posso parar por causa de um aluno só”. Mas o que será que se passa com aquele estudante? Ele está apenas distraído? Ou há algo mais profundo acontecendo ali? Talvez aquele olhar perdido pela janela seja um pedido silencioso por atenção, por compreensão, por alguém que o enxergue.
Esse tipo de cena se repete diariamente em milhares de escolas ao redor do mundo. E talvez o que esteja faltando ali não seja mais conteúdo, nem mais disciplina, mas mais conexão. Sim, conexão. Porque educar é, antes de tudo, estabelecer relações. E relações significativas. Relações que humanizam. Relações que tocam. A escola tem sido, historicamente, um lugar de conteúdos. De avaliações. De métricas. De cumprimento de carga horária. Mas raramente ela tem sido pensada como um lugar de vínculos. E, no entanto, é justamente aí que reside o maior potencial transformador da educação.
Quem nunca teve um professor marcante, que fez com que a aprendizagem se tornasse prazerosa, envolvente, significativa? E não foi apenas pela competência técnica (embora isso conte bastante). Foi, sobretudo, pelo modo como ele nos fez sentir. Nos sentimos respeitados, vistos, considerados. Havia ali uma presença verdadeira. Um desejo genuíno de ensinar, mas também de encontrar-se com o outro.
Em um dos livros que li nesse recesso, intitulado “Eu e Tu”, o filósofo Martin Buber diz que “Toda vida é encontro”. E a educação, enquanto prática da vida, também é. É no encontro entre professor e aluno que o conhecimento se torna vivo. Que deixa de ser um amontoado de informações para tornar-se experiência compartilhada. Quando há vínculo, há escuta. Quando há escuta, há abertura. E quando há abertura, há aprendizagem. É por isso que um aluno que gosta do professor tende a aprender com mais facilidade. O afeto funciona como uma ponte. Uma ponte invisível que liga dois mundos distintos e os transforma em uma só travessia.
Mas como construir essa ponte? Como sair do lugar do distanciamento formal e aproximar-se do aluno sem invadir sua individualidade? A resposta está na empatia. Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, não no sentido de presumir o que ele sente, mas de estar disposto a escutá-lo, a compreendê-lo sem julgamentos. Na educação, empatia não é um luxo, é uma necessidade. Quantas vezes cobramos rendimento de alunos que mal conseguiram dormir à noite? Que estão vivendo conflitos familiares, passando fome, lidando com ansiedade, depressão, violência? O que pode significar, para esses estudantes, uma aula de física ou uma prova de geografia?
É evidente que não podemos abrir mão do conteúdo. Mas é igualmente evidente que o conteúdo só faz sentido quando encontra um ser disponível para recebê-lo. E esse ser só se abre quando se sente segura, acolhida, respeitada.
O educador português José Pacheco costuma dizer que não há aluno indisciplinado, há aluno mal compreendido. Essa afirmação pode parecer exagerada à primeira vista, mas convida a uma mudança de olhar. Em vez de rotular comportamentos, podemos nos perguntar: “O que esse comportamento está tentando comunicar?”. Muitas vezes, o que chamamos de “desinteresse” ou “rebeldia” é, na verdade, um grito por atenção, por afeto, por cuidado (ressalto: Muitas vezes, e não sempre!).
Pensemos no exemplo clássico do aluno com dificuldade de aprendizado. Em uma abordagem puramente técnica, o professor poderia simplesmente repetir a explicação, talvez com outras palavras, para toda a turma. O professor empático, no entanto, vai além. Ele percebe a linguagem corporal do aluno: os ombros caídos, o olhar baixo, a hesitação em perguntar novamente por medo do julgamento dos colegas. Ele compreende que por trás da dúvida intelectual existe um turbilhão de emoções, como frustração, vergonha, ansiedade, talvez até o sentimento de incapacidade. Movido por essa compreensão, ele adota uma postura que quebra barreiras. Ele caminha pela sala, diminui a distância física e se senta ao lado do aluno. Esse simples ato de se colocar no mesmo nível físico é carregado de simbolismo. Ele comunica, sem palavras, uma mensagem poderosa: "Eu estou aqui com você. Sua dificuldade não o diminui. Vamos enfrentar isso juntos". Ao oferecer uma explicação individualizada, olhando nos olhos, ele não está apenas resolvendo uma dúvida de matemática ou história; ele está validando os sentimentos do aluno, restaurando sua confiança e ensinando, pelo exemplo, o que significa cuidar do outro. Essa atitude não só potencializa a aprendizagem do conteúdo, como também cria um ambiente de segurança psicológica onde todos os alunos se sentem mais à vontade para expor suas vulnerabilidades.
Essa prática empática do professor reverbera por toda a sala de aula, criando uma cultura de respeito e apoio mútuo. Quando os alunos testemunham seu professor tratando cada colega com dignidade e paciência, eles internalizam esse comportamento. Aprendem que ajudar quem está com dificuldade não é motivo de zombaria, mas um ato de força e solidariedade. E esse tipo de gesto, repetido ao longo do tempo, vai tecendo laços de confiança. Laços que sustentam o processo educativo mesmo nas horas mais difíceis. Quando o professor olha nos olhos do aluno, quando presta atenção real à sua dúvida, à sua expressão corporal, ao seu silêncio, está exercendo uma forma rara de generosidade. E isso, mais do que qualquer metodologia inovadora, transforma a sala de aula.
Mas chego aqui em um ponto delicado. Muitos professores (com razão) reclamam que não são pagos para estabelecer vínculos, acolher afetos, cuidar da saúde emocional dos alunos. E estão certos. O sistema educacional, como está estruturado hoje, cobra do professor resultados mensuráveis, cumprimento de currículos, metas e padrões. Não há espaço institucionalizado para o cuidado, para a escuta, para o vínculo. E, no entanto, é isso que sustenta a prática pedagógica. Os professores que conseguem manter sua saúde mental, que ainda sentem prazer em ensinar, são geralmente aqueles que desenvolveram relações significativas com seus alunos. Porque um professor que se conecta com seus estudantes vive sua profissão com mais sentido. E o sentido, mais do que o salário, é o que sustenta a jornada. Não se trata de romantizar a docência. Pelo contrário. Trata-se de reconhecer que, diante de um sistema desumanizante, os vínculos são formas de resistência. São gestos de humanidade onde se esperava apenas técnica.
Lembremo-nos aqui de Paulo Freire, cuja pedagogia é, essencialmente, uma pedagogia da escuta, do afeto, do reconhecimento do outro como sujeito. Em “Pedagogia do Oprimido”, ele afirma que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. E isso só é possível quando há relação dialógica, quando há envolvimento mútuo. Em suas experiências com adultos analfabetos nas zonas rurais do Brasil, Freire não começou pelo alfabeto, mas pela escuta. Perguntava sobre a vida dos alunos, suas dores, seus sonhos. A partir das palavras geradoras, criava contextos de aprendizagem que faziam sentido para aqueles sujeitos. Era a pedagogia do vínculo em sua expressão mais radical.
Outra fala que gosto bastante é a da professora norte-americana Rita Pierson, que ficou famosa por sua palestra no TED intitulada “Todo aluno precisa de um campeão”. Ela afirma com paixão: “Os alunos não aprendem com pessoas que eles não gostam”. E completa: “Somos educadores. Nascemos para fazer a diferença.” Rita passou décadas ensinando em contextos desafiadores, e nunca abriu mão da conexão humana como base do processo educativo. Ela sabia que, antes de ensinar, era preciso tocar o coração.
Muito se fala sobre o problema da indisciplina nas escolas. Mas pouco se discute suas causas profundas. Um aluno que se sente ouvido, valorizado e respeitado tende a respeitar também. A autoridade imposta gera obediência superficial. A autoridade construída no vínculo gera colaboração autêntica. É por isso que professores que mantêm boas relações com seus alunos geralmente têm menos problemas disciplinares. A convivência em sala melhora, o clima é mais leve, o processo de ensino-aprendizagem flui com mais naturalidade. E não se trata de “ser amigo” dos alunos, mas de ser genuinamente humano.
Sempre tive salas que eram tidas como difíceis (seja por comportamento, seja por aprendizagem, senão por ambos). Lembro de uma experiência, nos primeiros anos de docência, de um menino tido como "problemático", “disperso”, “indisciplinado” e “difícil de lidar”. Nos conselhos de classe de anos anteriores, essas eram as palavras que sempre o descreviam. Realmente tive dificuldades nos primeiros momentos com ele, até mesmo pela inexperiência de início da profissão. Mas um determinado dia, resolvi tirá-lo para fora da sala, sentarmos em um banquinho que estava próximo e simplesmente ouví-lo sobre o porquê de alguns comportamentos que apresentava. Ao ouví-lo, compreendi muito sobre as atitudes que eram demonstradas por ele, pois, levando em conta tudo o que aquela criança estava passando em casa, me ver explicando sobre como revisar um texto, seria a última coisa que ele queria ouvir naquele momento. A partir daquele simples gesto de escuta e conexão, o menino foi se transformando passou a se interessar mais pelas atividades, a colaborar com os colegas e a mostrar competências e habilidades antes invisíveis. O conteúdo? Veio depois. Primeiro, veio o vínculo. Acho que essa foi uma das primeiras aprendizagens que começaram a moldar minha vida docente.
Mais do que ensinar conteúdos, o professor é, para muitos alunos, a única presença estável e significativa em sua vida. Quantos estudantes têm no ambiente escolar o único espaço de acolhimento? Quantos veem no professor um modelo de ética, de sensibilidade, de escuta? Essa responsabilidade é enorme. Mas também é uma oportunidade extraordinária. Cada encontro em sala de aula pode ser uma semente plantada. E sementes plantadas com afeto germinam mesmo nos solos mais áridos.
Estamos, talvez, num momento em que a educação precise urgentemente resgatar sua dimensão mais humana. As tecnologias avançam, os métodos se sofisticam, mas a essência da educação continua sendo o encontro entre seres humanos. Um encontro que transforma a ambos. Um encontro que exige presença, escuta, empatia e, sobretudo, vínculo. Educar não é preencher recipientes vazios. Não é apenas transmitir conteúdos. É olhar nos olhos. É reconhecer no outro alguém único, com uma história única, com dores e desejos únicos. É, no fundo, reconhecer a humanidade do outro e permitir que a nossa humanidade apareça também.
Se você é educador, talvez já saiba disso. Talvez já tenha experimentado a potência de uma relação significativa com um aluno. E, se já experimentou, sabe que nenhum gráfico de resultados de uma avaliação será capaz de traduzir esse impacto. Porque o que se constrói no vínculo transcende os limites da escola e ecoa pela vida inteira.
E se ainda não experimentou, talvez seja hora de arriscar. De olhar para além dos conteúdos. De sentar-se ao lado. De perguntar com interesse genuíno. De fazer da sala de aula um território de humanidade. Afinal, como dizia Rubem Alves, “ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma, continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra”. E essa mágica só acontece quando há afeto. Quando há presença. Quando há vínculo.
Porque, no fim das contas, é isso que ficará. O conteúdo se esquece, a fórmula se apaga, a data histórica se confunde. Mas o afeto, o cuidado, a conexão... isso permanece. E é isso que, muitas vezes, salva.
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